Por LUSA
O Presidente cabo-verdiano José Maria Neves considera que o desempenho da administração pública e do Estado está a ser prejudicado por uma “excessiva partidarização”.
“A grande questão em Cabo Verde tem a ver com o excessivo custo de participação política”, tendo em conta, “essencialmente, as represálias que as pessoas sofrem”, referiu numa conferência sobre política em que foi orador ao lado de outros dois antigos chefes de Estado, Jorge Carlos Fonseca e Pedro Pires, uma rara reunião de figuras políticas.
“Essa excessiva partidarização tem reflexos no desempenho da administração pública e no desempenho global do Estado. A questão não é o resultado do desempenho individual ou organizacional, mas é o nível de lealdade política que existe em relação a este ou aquele partido político”, afirmou, em resposta a um jovem na plateia, num evento que se prolongou durante a noite.
José Maria Neves socorreu-se da comparação feita, em determinada ocasião, por um professor universitário: “disse que a administração (pública) é um vulcão do Fogo, porque tudo, absolutamente tudo, vai parar ao topo da administração”, considerando que as chefias intermédias receiam estar a tomar partido.
O chefe de Estado ilustrou, dizendo que “um diretor-geral não assume riscos políticos de determinadas decisões” e um processo tem de “subir ao gabinete do ministro ou primeiro-ministro para que as coisas sejam decididas”.
A situação faz com que, segundo José Maria Neves, “alguns gabinetes ministeriais em Cabo Verde” sejam “quase confessionários”, onde as pessoas “estão lá à espera, para se confessarem ao padre”, numa alusão à hierarquia.
A situação “tem reflexo no desempenho da saúde, da educação e de vários outros setores”, disse. “Na educação, acho que temos de fazer uma autêntica revolução”, acrescentou.
“Nos 50 anos (de independência), fizemos razoavelmente bem o que tínhamos de fazer, agora, se continuarmos a fazer da mesma forma, vamos retroceder, claramente. O país perderá em termos de competitividade”, disse, numa alusão à independência de Portugal obtida em 1975, quase a completar meio século.
Como solução, José Maria Neves sugere um reforço da “confiança entre os partidos políticos” e que os intervenientes consigam estabelecer os seus próprios limites de atuação.
Os comentários do Presidente cabo-verdiano surgiram perto da data (hoje, 09 de novembro) em que vai assinalar dois anos de mandato e após semanas preenchidas com apelos ao Governo para uma maior concertação, chegando a escrever que há um distanciamento que se abeirou da “deslealdade constitucional”.
José Maria Neves foi eleito com o apoio do Partido Africano para a Independência de Cabo Verde (PAICV), enquanto o Governo é liderado pelo Movimento para a Democracia (MpD), com maioria absoluta no parlamento — sendo ambas as forças políticas dominantes no país.
Questionado pela plateia, o chefe de Estado considerou que as experiências de coabitação têm funcionado em Cabo Verde, com momentos de tensão que os presidentes devem colocar em debate para levar a um crescimento da literacia constitucional.
Jorge Carlos Fonseca, antigo presidente, apoiado pelo MpD, entre 2011 e 2021 (e que tal como Pedro Pires trabalhou com o então primeiro-ministro José Maria Neves), apontou aquele tipo de tensões como algo que já surgiu e que são sintoma saudável de um sistema democrático semipresidencialista que deve primar pelo diálogo.
Mas há outros pilares da democracia que estão a sofrer, apontou.
“Pode dar a impressão de que as coisas em Cabo Verde em termos de democracia estão formidáveis. Não estão, em meu entender. Há insuficiências, brechas, fissuras no edifício de construção da democracia e Estado de direito que convém merecerem a nossa atenção”, referiu.
Um dos pilares que “merece ser fortalecido” é o da capacidade técnica e independência do poder judicial”.
“Eu sei que os juízes não gostam de ouvir, mas a ideia que eu tenho é que, evidentemente, o poder judicial em Cabo Verde é independente, mas não me parece que seja ainda suficientemente capacitado tecnicamente, o que é um aspeto importante da independência”, referiu.
Um outro pilar, adiantou, é a sociedade civil, que pode tornar as democracias mais fortes se for “capaz de funcionar como uma espécie de instância de controlo de todos os poderes”.
“Não temos isso, ainda, em Cabo Verde”, acrescentou, defendendo uma aposta generalizada na educação, sobretudo, na formação de professores, seguindo as melhores práticas institucionais.
No guião sobre inovações em política – que era o tema inicial da conferência -, o antigo presidente Pedro Pires, apoiado pelo PAICV, recomendou “sensatez”.
“Quando está em causa o país” considerou fundamental que haja diálogo: “É assim que vejo a relação entre os poderes”.
“Vivemos uma situação extremamente crítica”, referiu, numa alusão à geopolítica mundial, “e isso aconselha a consultarmo-nos uns aos outros. Não é no bom tempo que a gente se consulta, é no mau tempo”, acrescentou, no que considera ser uma questão de “sensatez e de uma certa experiência política”.