POR LUSA
A presença portuguesa no Gungo (município do Sumbe), feita de fazendas de café e sisal nos tempos coloniais, é hoje uma questão de fé, materializada na igreja dos anos 50 que ali ainda se encontra, em avançado estado de degradação, e na missão liderada pelo padre David Ferreira, da diocese de Leiria-Fátima.
Para lá chegar há que percorrer 130 quilómetros a partir da capital do Cuanza Sul, Sumbe, num caminho tortuoso e esburacado que se torna numa pista escorregadia, à medida que as chuvas transformam a picada num trilho de lama vermelha.
Os últimos 50 quilómetros depois de terminar o asfalto, levaram à equipa da Lusa cinco horas a fazer numa aventura só acessível a motos e todo-o-terreno.
A ideia da missão começou a germinar na década de 80, mas só quando se avançou, em 2006, para a geminação das duas dioceses – a portuguesa de Leiria-Fátima e a angolana do Sumbe, – passou a contar com a presença permanente de um padre e do grupo de leigos missionários Ondjoyetu (A nossa casa, em Umbundu) que tentam ajudar a população a superar as dificuldades do quotidiano.
Sem rede de telemóvel, eletricidade ou abastecimento de água, os habitantes das aldeias estão entregues à sua sorte e têm de fazer longos percursos para telefonar, ir à escola ou comprar bens essenciais.
“Pode parecer uma coisa insignificante, mas em toda esta área este é o único sitio onde se tiram fotocópias”, diz o padre que chegou ao Gungo pela primeira vez em 2006, ali permaneceu por cinco anos, e regressou à missão em 2016.
Com a ajuda dos aldeãos, já construíram uma moagem para aliviar as dores das mulheres que batem o milho de forma tradicional até o transformar em farinha, puseram a circular um camião para escoar e trazer produtos, criaram uma cantina solidária que vende bens de primeira necessidade a preços económicos, construíram uma capela, prestam assistência num pequeno posto de saúde e estão a desenvolver um sistema de abastecimento de água por gravidade.
Numa visita guiada pela Donga, um dos onze centros e sede da missão, David Ferreira exibe algumas das melhorias, entre as quais uma máquina vinda de Portugal que produz blocos de terra comprimida (BTC), mais resistentes do que o adobe, e ‘kits’ solares que permitem à missão ser “uma luz na escuridão” das montanhas.
David Ferreira espera também conseguir pôr novamente a funcionar o telefone por satélite que ali foi instalado em 2017 e servia como posto público, para que não continue a ser necessário percorrer 20 quilómetros para receber notícias da família ou alertar para emergências.
“Gastaram-se em chamadas a partir deste local desde 2017, entre 2,5 e 3 milhões de kwanzas” (entre 2.800 e 3.400 euros), afirmou à Lusa, David Ferreira, sublinhando a necessidade e justificação económica das comunicações no local.
O padre quer também recuperar a igreja dos anos 50 consagrada a Nossa Senhora da Conceição, delicadamente poisada numa rocha e envolvida pela paisagem em estado de graça.
No seu “cavalinho branco”, o nome do jipe que já fez 421 mil quilómetros ao serviço da Missão de São José do Gungo, o incansável “padre todo-o-terreno”, que é cuidador de almas, engenheiro, agricultor, médico e o que mais for necessário, vai, picada acima picada abaixo, tentando mudar vidas numa “caminhada conjunta” com a população.
“Este povo sente-se muito abandonado”, lamenta, apontando a “via de acesso claramente descuidada” como um dos problemas daquele sítio remoto, por onde passaram já 60 voluntários, desde 2016, altura em que foi criado o grupo Ondjoyetu.
Ana Lúcia, jovem enfermeira de 23 anos, é uma das mais recentes. Chegou em novembro e cresceu a ouvir os relatos familiares “das terras do Gungo” e, por isso escolheu Angola para a sua primeira experiência de voluntariado fora de portas.
“No dia em que cheguei à Donga senti-me em casa”, afirma.
Recebe a equipa de Lusa com rosto alegre e mãos enfarinhadas do pão com chouriço que amassou com as aldeãs e servirá para o pequeno-almoço dos recém-chegados de Luanda “mandachuva da Donga” que, impelidos pelo espírito da época, carregam donativos e brinquedos para as crianças.
A chegada noturna dos “pais natais” é celebrada com cânticos e danças e com a sopa do “avô Filipe”, cozinheiro da Missão há 30 anos, que aconchega os visitantes antes de estes se prepararem para um curto repouso.
Dali a umas horas o sino vai convocar todos para as orações matinais às 06:00 numa “igreja” improvisada, com altar e cruz de tábuas de madeira.
Mais tarde, David Ferreira celebra a missa dominical, que integra partes em Umbundu, cantares tradicionais, o palrar e choraminguice das crianças amarradas nas costas das mamãs, o cacarejar dos galos, os aromas do campo e da lenha a estalar no forno.
A enfermeira Ana Lúcia descreve a beleza do local onde se perde em momentos contemplativos como uma “obra magnífica”. Por ali vai ficar seis meses a “ajudar o próximo”, a cuidar de pequenas maleitas e a ajudar a passar mensagem sobre cuidados básicos de saúde, para “fazer as pessoas perceber que basta água e sabão para lavar uma ferida”.
Diz que a barreira linguística dificulta um pouco a compreensão, mas tenta “entrar na realidade deles” para conseguir ajudar as comunidades e “aplicar o bocadinho” que trouxe da sua formação académica e experiência hospitalar, curando constipações, tratando de feridas e queimaduras, problemas de pele ou o inevitável paludismo.
Enquanto Ana Lúcia se encaminha para o “consultório”, o “avô Filipe”, de 82 anos, está de roda dos tachos.
Recorda quando começou a cozinhar, em 1954, altura em que as fazendas dos portugueses “estavam todas a enviar café”, orgulha-se quando lhe elogiam os cozinhados e fala no legado que quer deixar, ensinando aos outros o seu saber.
“Não somos salvadores, fazemos o nosso bocadinho”, resume David Ferreira, acrescentando que “em Angola há muitos Gungos iguais a este”.
“Se pudermos ajudar um bocadinho, é aí onde devemos ser missionários”, realça, regozijando-se com a certeza de uma missão “que está com o povo e caminha com o povo”.