Por LUSA
As eleições autárquicas marcaram 2023 em Moçambique, com alegações de fraude que geraram protestos quase diários desde outubro, num ano em que o som da rua se começou a ouvir em março, após a morte do “rapper do povo”.
Na manhã de 18 de março, um sábado, milhares concentraram-se em Maputo para cantar “Povo no Poder”, a mais notável música do ‘rapper’ Azagaia, numa marcha autorizada pelas autoridades municipais e que atingiu uma dimensão inesperada, com a polícia a carregar e a lançar gás lacrimogéneo contra os manifestantes, resultando em duas dezenas de detidos e vários feridos.
Quatro dias antes, o funeral de Azagaia – morreu em 09 de março, aos 38 anos, em circunstâncias não totalmente claras – tinha juntado milhares de pessoas em Maputo, mas o cortejo foi bloqueado por blindados e polícia fortemente armada que disparou gás lacrimogéneo num ponto do percurso que passaria em frente à residência oficial do Presidente da República.
O momento serviu de contestação à governação e à Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo, no poder), mas “Povo no Poder” voltaria a ouvir-se meses mais tarde, nas marchas de contestação da oposição aos resultados anunciados das eleições autárquicas de 11 de outubro.
O Conselho Constitucional (CC) proclamou em 24 de novembro a Frelimo vencedora das eleições autárquicas em 56 municípios, contra os anteriores 64, com a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), o principal partido da oposição, a vencer quatro, apesar de reivindicar a vitória em quase duas dezenas, incluindo Maputo.
As eleições foram mandadas repetir em outros quatro municípios.
As ruas de algumas cidades moçambicanas foram logo tomadas por consecutivas manifestações da oposição contra a “megafraude” no processo das eleições autárquicas. Os resultados ainda são hoje criticados pela sociedade civil e organizações não-governamentais, que apontam graves vícios durante o escrutínio, enquanto a Ordem dos Advogados de Moçambique considerou que a proclamação dos resultados pelo CC careceu de fundamentação e pediu a revisão da legislação eleitoral.
Analistas moçambicanos ouvidos pela Lusa consideram que uma nova vaga de eleitores mais jovens e sem os mesmos laços afetivos com o “partido libertador” do colonialismo português, a Frelimo, tornaram as autárquicas num julgamento popular. O crescente desemprego e pobreza urbana, a revolta dos funcionários públicos com a nova Tabela Salarial Única (TSU) – incluindo magistrados, médicos e professores -, implementada em 2023 e que deixou milhares com salários em atraso, bem como a emergência de figuras mais novas na Renamo e sem vínculos com o passado de guerra do principal partido da oposição, contribuíram decisivamente.
“É o resultado de um crescimento urbano acelerado acompanhado pela desindustrialização e pela pobreza urbana”, considera João Feijó, investigador do Observatório do Meio Rural (OMR), entidade de pesquisa independente moçambicana, reconhecendo que reflete também as migrações para as principais localidades de novos fluxos populacionais que exigem soluções para os problemas, sem a gratidão de um passado de luta pela libertação do país.
João Feijó diz que a enorme adesão da juventude ao funeral de Azagaia e o sentimento de perda foi uma manifestação de disponibilidade para uma militância ativa por parte das novas gerações. Por outro lado, diz, a ausência ou falhanço de políticas públicas para serviços sociais básicos, como emprego, habitação e transportes também tem agudizado a revolta das populações urbanas.
A Renamo foi a votos pela primeira vez com o seu braço armado totalmente desmantelado, ao abrigo do processo de Desarmamento, Desmobilização e Reintegração (DDR), iniciado em 2018. Abrange 5.221 antigos guerrilheiros Renamo, dos quais 257 mulheres, e terminou em junho último, com o encerramento da base de Vunduzi, a última, no distrito de Gorongosa.
Fernando Lima, analista político, aponta o “desastre” da TSU e “o modo descarado como foi feita a fraude” nas eleições autárquicas, como fatores que tornaram o escrutínio num acontecimento emblemático do processo de construção da democracia moçambicana: “O país não está bem economicamente, foram muitos anos com grandes dificuldades económicas impostas a este Governo por causa de um problema do Governo anterior, que tem a ver com as dívidas ocultas”.
Assinala que há evidências de que a oposição teve um bom desempenho nas eleições, em grande parte devido ao desgaste da imagem da Frelimo, mas a vitória da Renamo nas principais cidades foi negada por “resultados fabricados pelos órgãos eleitorais e corroborados” pelo CC.
Após seis anos a combater o terrorismo dos grupos associados ao Estado Islâmico em Cabo Delgado, 2023 contou com o anúncio feito pela voz do próprio Presidente da República, em agosto: “No dia 22 foi colocado fora de combate o líder dos terroristas em Moçambique, Ibin Omar (Bonomade Machude, também conhecido por Abu Suraka)”.